À beira.
Indizível é essa falha de palavras que às vezes acontece mas que não é um silêncio. Não
encontrar as palavras é muitas vezes devido à sideração. Ficamos sem voz, mas além desse
mutismo, quando as palavras não vem para exprimir uma emoção ou uma sensação que
surpreende quem está a ver, o corpo, ele, expressa-se. Não é sobre beleza nem sobre a
síndrome patogênica do viajante. Trata-se apenas de uma emoção sentida pelo observador,
induzida pela obra com ou sem a vontade do artista, ou por algumas visões fugazes.
Emoções tão fortes a ponto de não encontrar palavras me aconteceram algumas vezes,
muito raramente, diante de uma obra de arte. Uma das primeiras vezes foi para Passagem,
um vídeo de Bill Viola de 1991, cerca de vinte minutos do aniversário de uma criança, imagens
filmadas e depois desaceleradas em mais de seis horas e meia. Onde entendi que uma
emoção não vem « súbito » mas que surge aos poucos, aos passos, em etapas, subindo
serrilhada para expressar-se numa libertação. O tempo normal nos dá a sensação que um
ataque de riso ou as lágrimas surgem de repente. Porém, Bill Viola revela-nos este estranho
e tortuoso caminho feito de pequenos espantos para explodir em uma emoção forte. Outra
vez, debaixo da terra, nos moinhos do Albigense onde Pedro Cabrita Reis tinha instalado uma
obra composta de madeira, vidro e uma lâmpada frágil suspensa numa abóbada rochosa. A
ver, provocou-me uma crise irreprimível de lágrimas que não compreendia. Escrevemo-nos
para tentar aprofundar. Até o dia em que nós dois, de mãos dadas na ponte sobre o rio Tarn,
assistimos, pasmados, à destruição dessa obra nas águas furiosas de uma cheia. Outra vez
em frente ao Quarto dos pequenos desastres, obra imensamente poética de Paul Sztulman
e Jacques Julien… Tanto nesse quarto minúsculo feito de vários materiais, inscrevem-se
furacões, trovoadas e maremotos.
Não amar ou odiar abre com demasiada facilidade as comportas do discurso enquanto
a indizível emoção nos surpreende pelo abismo do sentido que se adivinha sem poder
expressá-lo.
Procuro entender até hoje o que está em jogo quando surge uma emoção diante uma obra de
arte ou diante várias imagens encontradas por acaso, longe do « white cube »… Aparecem
assim as falésias de Cabaleria onde raparigas felizes, de cotovelos dados, cantam a plenos
pulmões num vento terrível. A ronda das mães da Praça de Maio. Os iaques estóicos no
nevão. A coragem dos pássaros. Mãos enfiadas no meu casaco, cabeça nas caixas de
som no show de My Bloody Valentine. O Rochedo dos Proscritos, sólido face aos assaltos
do oceano. Os salmões loucos que tentam mil vezes atravessar as cascatas. Crianças
apavoradas amontoadas sob as mesas quando tudo treme e vira. Ou aquele pequeno e
persistente broto de rosa trémula que fende o alcatrão…
Surda resistência poderia expressar, de forma lapidar, o que provoca essa emoção que sobe
em nós. Há sem dúvida um pouco de coragem, força também, paciência, resignação diante
de elementos tão poderosos. Existe também a sabedoria, aquela que vem das profundezas
das nossas existências. Enfrentar de forma frágil e teimosa a natureza e os seus excessos
loucos tanto quanto a violência do mundo que alguns malucos constroem para nós. Talvez
seja esse « enfrentar » que de repente vibre em nós
Procurar a expressão dessa surda resistência deveria poder partilhar-se com imagens,
gestos, textos ou sons numa deambulação sensível em Lisboa e Sète, à beira da arte.
– Philippe Saulle, curador